quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

O velho pires vazio



Acordei atordoado com a barulheira que fazia no prédio. Tive a velha impressão de sentir o cheiro forte do café que por anos me serviu de despertador. Deve ter sido um sonho, pensei. Odeio sonhos reais demais, desses que te enganam com cores vivas, cheiros e sabores - cheiro de passado e sabor de saudade que, por madre de dios, nunca vi tão amargo.

Sempre achei que não houvesse no mundo nada mais amargo do que o café de Clarisse. Até experimentar, numa monótona manhã de domingo, o café sem Clarisse. Clarisse, minha ex-futura esposa. A dona do pires que eu ainda ponho à mesa, no café. Por último e não menos importante: a futura mulher do meu vizinho de porta.

A barulheira que me fez despertar nada mais era do que o alvoroço de vizinhos a preparar um chá de cozinha que por pouco não era meu. Mas que ainda era dela. Da dona do velho pires vazio que se casaria com o cara que, não satisfeito em ter minha mulher, tinha também o meu nome. Que se dane. Não me sinto ofendido. Mas volta e meia ouço Clarisse chamar por ele e acho graça de como a vida às vezes parece gostar de nos testar.

Só por hoje eu quis novamente pôr dois pires sobre a mesa onde, é certo, há muito repousa uma só xícara. Dois pires, uma só xícara e um café com muito, muito açúcar. Acendo um cigarro e imagino aquela mulher aos gritos em meus ouvidos a reclamar da fumaça. Por segundos tento me convencer de que as coisas estão melhores agora que tudo pode ser do meu jeito.

Eu, um sonhador de sonhos reais, desses que têm cheiro e gosto de saudade. Eu, que acordo sentindo falta de um café que, por deus, sempre achei amargo demais, mas que hoje percebo tardiamente o quanto adoçava minhas manhãs. Eu, vizinho de porta de mim mesmo, do meu passado e ao mesmo tempo do que um dia acreditei que seria meu futuro, tomei uma decisão: Jogarei fora o pires vazio.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Beijei um cadáver



A boca tinha o mesmo gosto, mas o beijo já não causava o mesmo efeito. Ele não causava efeito algum. “Beijei um cadáver”, pensei. Morto por si só.

E o sereno me caiu sobre o rosto, indo em direção a boca, e era tão salgado como se água de mar fosse. Isso porque, de gaiato, misturou-se no meio do caminho às lágrimas que derramava por tudo que não sobrou de nós.

Odeio enterros. Quase sempre chove.